Wednesday, February 27, 2008

Cassandra

Estava sentado na Gulbenkian, como fazia alguns dias, algum sem tempo atrás e já me tinha consumido em fumo algumas vezes no meio do entretanto. O céu não parecia radiante.
Apercebi-me de um tímido Sol um pouco além. Para um astro tão brilhante, parecia de repente muito pouco radioso - haveria de perceber a sua eterna melancolia - irritante, ainda assim, enervava as nuvens à sua volta. Elas, soltas, acinzentadas em ódio sustiam com dificuldade o seu desejo em chorar.
Ao meu lado cadáveres de folhas desenhavam a paisagem à minha volta enquanto, num corrupio, o vento segurava os meus pensamentos levando o meu espírito algures para longe do corpo.
Estava frio dentro de mim. Creio que fora também.
Tornou-se tarde, o dia. A noite ameaçava invadir-me o relógio.
Enamorava-me a olhar para o telemóvel enquanto as horas arrebatavam-no sem pudor quando de repente olhei para o lado.
Nada vi.
Olhei novamente, e só a vi a ela. Vou ser franco, o seu sorriso. Nada mais.
Sem fazer perguntas sentou-se ao meu lado e sorriu. Aguardou uma resposta.
Eu nada disse.
Olhou-me novamente com os olhos de avelã e apresentou-se, como se sorriso dela não tivesse dito tanto à partida. Disse-me que o nome dela era Cassandra . Eu respondi-lhe hesitante:
«Olá Cassandra»
«Pareces-me preocupado. Que te ocupa a mente?» - disse ela questionando-me com o seu olhar sorridente.
Sorri de volta em vazio.
Expliquei-lhe que pensava em Amor. Mas cedo tive de corrigir, assim que ela me explicou que não sabia ao certo o que isso era.
«Amor?»
«Sim, as perguntas desesperam-me, mas acho que sempre tive medo das respostas.»
Ela parou por momentos antes de me dizer «Estás à procura Dele?»
Ri-me. «Não, ora ai está uma lição que já aprendi»
Ela riu-se de volta. «Quer-me parecer que achas que sabes umas coisas...»
«Sim! Creio que sim» - disse, hesitante, com medo que a minha resposta não fizesse jus à minha pretensão.
Antes que eu pudesse acrescentar qualquer coisa vi nos olhos dela a minha ignorância. Ela apercebeu-se do meu vacilo e questionou-me acerca dos meu conhecimentos de amor.
Comecei vacilante «Por vezes, para alguns, é uma musica...»
«E para ti?»- interrompeu-me.
Aí inspirei-me. Falei-lhe de rombos e oceanos, de toques e delicadezas. Expliquei-lhe, da mesma forma que, como Omega, regurgitei para outros ouvirem. No final acrescentei já em êxtase «É fazer sentir no beijo o toque e no toque o desejo. No desejo o torque que me espera com toque do beijo. É respirar uma essência na discência de um ego. Olhar tão longe e só ter aquele universo» - respirei - «Iluminar. Enfim, o Amor é belo»
Quem diria, numa noite igual a outras, algures num jardim em Lisboa, iria Eros revelar-se a mim. Foi assim que Cassandra me falou dos mistérios do amor. Pela boca de Platão, Sócrates disse aquilo que já tinha ouvido de Diotima, e foi isso mesmo que ela me explicou.
«Dizes que quando estás apaixonado, num estado em que referes que o amor habita em nós, é como se o universo estivesse concentrado na outra pessoa. Isso não é necessariamente falso. Platão diz que, em certo sentido, o universo realmente está nessa pessoa. Tu só precisas transformar essa dimensão e ver não apenas a pessoa, mas o universo nela.»
Concordei.
Ela olhou-me profundamente sondando os meus pensamentos que entretanto haviam sido entregues pelo vento. Compreendi que não tinha chegado da mesma forma que tinham vindo. Talvez tivessem sido sacudidos pela noite.
Perguntou-me serenamente «Achas então que o Amor é belo?»
«Se falamos do amor que exaltei há momentos, sei que é, só pode ser. Quando amamos, subitamente vemos, não a manifestação da beleza, mas a beleza em si. Esse é o ponto alto dos sagrados mistérios. O amor expressa-se como a manifestação eterna da beleza em si. Apaixonamo-nos pela essência que torna belas todas as coisas.»
Parou uns segundos até que decidiu contar-me então a história do nascimento do Amor. Era já uma história antiga quando os antigos a contaram pela primeira vez. Diziam que era quando o tempo ainda era o Sol. Talvez na mesma altura em que a noite seduziu a Lua aos seus desígnios, mesmo antes de se adornar de estrelas como uma promessa desse amor. Bem no momento em que o Sol se escondeu envergonhado e assim o fez todos os dias, para no dia seguinte se levantar em orgulho outra vez.

Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais encontrava-se também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. A Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado. E pronto... concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite, o Amor, gerado em seu nascimento, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, é corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá.

Sustive a respiração por alguns segundos.
«Queres dizer-me que o amor não possui em si a beleza que todos vemos?»
Ela apaziguadoramente colocou a mão na minha mão. Só aí reparei quão belas aquelas soavam em seu toque.
«O amor não é belo. O amor apenas acontece em pessoas belas, o amor persegue a beleza»
Ela depressa apercebeu-se do meu olhar inquisidor, algo decepcionado.
Entretanto, demasiado depressa para que eu pudesse ter visto, um insecto voou perante mim fazendo-me olhar para cima. Quase não tinha reparado como o céu já se tinha vestido de noite. Sendo que o Sol, no seu ritual diário, se havia escondido em vergonha perante o fado que lhe foi ditado. Não sei porquê, mas a noite parece-me sempre tão grande.


Acordei, acho que só dois dias depois, para falar com ela novamente. Passaram a Primavera, os beijos inconsequentes e a totalidade do “talvez seja paixão” enquanto tentava trazer a tudo, o todo a mim trazido intemporalmente. Tinha que ser. Não sei se por ser bela como o crepúsculo ou se por ter arrasado a sensação disforme dentro de mim de uma maneira tal que, se não tivesse achado tão verdadeira, teria sido quase cruel: definitivamente tinha que ser. Peguei no telemóvel com dois tracinhos de rede e liguei-lhe. Não tive coragem de dizer nada. Ou vi os “alô’s” , surpreendentemente nada impacientes, como se soubesse que era eu, até eu desligar covarde de sensações interrompendo o centésimo “alô” em voz doce dito no dialecto da delicadeza. Foi fumo outra vez. A realidade rodopiou nos pensamentos anarcas, as sensações manifestaram-se como as nuvens cinzentas e até dentro de mim choveu. Tentei novamente e só o silêncio prevaleceu. Assim continuou até que me deitei no fim do dia com a mente palpitante, insegura, encerrada em ferros de injustiça: tantas sensações só podiam ser a introdução a estar apaixonado.
Superei-me no entendimento do sublime sem ser num gesto altruísta e decidi esmolar o meu caminho. Foi sem querer que o fazia conscientemente pois não me devia sentir entregue à angústia de conhecer a verdade ciente que deve ser aí que se sabe que os sonhos foram partidos.
Quis gostar dela todo o tempo a seguir enquanto os meses se passavam até que depois da espera finalmente nos reencontrámos no lugar do costume.
Senti, no meu coração, a morte a palpitar. Entorpeceu-o sem ser subitamente, apaziguado pelo ódio crescente. Senti também a pele esfriar-se de dor.
Sentei-me. A vitalidade de mim dissipar-se-ia como se ali não mais fosse o seu lugar. Os meus olhos desfaleceram-se envergonhados e doaram o seu brilho à noite.
Cassandra ergueu-se solidária. Mas acho que o veneno já aí tinha corrompido a minha alma quando eu lhe disse secamente:
- Esperava que alguma morte já te tivesse caçado. – estava ressentido pelo abandono aos meus pensamentos.
Cassandra não me quis pedir desculpas mas os olhos dela traíram-na bem. As respostas de outrora já não eram aplicáveis: ela era a minha kryptonite.
- Dá-te a oportunidade de ser o mais perto de feliz possível.
-Tu não sabes amar... – atacou – Tens do toque de tocar mas o cansaço da vida, o síndrome de ser atroz, o coração impenitente só te trazem o aborrecimento de estar vivo e não concebo um amor doente e morto ou uma paixão moribunda perplexa de vazio nesse teu corpo de lágrimas soluçantes do ego de um mundo.
- Não – balbuciei por reflexo.
- Os homens raramente morrem de amor: eles adormecem antes. E as mulheres às vezes morrem desse adormecimento. Não sei mesmo se vale a pena morrer por ti.
Assumi que com estas palavras ela me dava permissão para a tocar e negar pela dança das amígdalas. Não pensei que fosse mais uma lição pelo que nesse mesmo pedaço de dia resolvemos acharmo-nos. Combinámos fazê-lo quando o manto de penumbra engolisse o Sol, para que apenas as estrelas testemunhassem o encontro. Logo que os asteriscos brilhantes reconquistaram o céu pela milionésima vez, corremos ao lugar marcado. No jardim, onde tantas vezes pousámos com as folhas do Outono, abraçámo-nos com suavidade, trocámos um beijo com o olhar e levámo-nos para outro sítio para, pela primeira vez, fazermos o amor
Desta forma, partilhando a cama, permanecemos um só. Iluminámo-nos Apenas nos levantávamos para nos alimentarmos de néctar e nos purificarmos em deuses. Fazíamo-lo tão depressa que o resto da sua respiração se transformou numa comoção.
«Voamos» – suspiramos sorridentes. De facto, assim foi até que quando subimos tão alto que, inanimados, inspiramos dúvidas e certezas, infiltramo-nos em teias de medo limando uma e outra significação. Entre as displicências, perdemo-nos em nós mesmos e embrenhamo-nos num “nós” agora existente. Sentimos, respiramos e desesperadamente vivemos
Soluçámos toques com ânsia de existir sem problemas em serem reais. Falcatruas de pensamentos, ilusões de fantasias: a utopia dos lábios colados. Encontramo-nos numa Babilónia de paraíso e em furor prometemo-nos luas de desejo, de ardor e de paixão. Em cada segundo que atingimos o zénite da sensação que nos invadia, verdadeiramente existimos.
Não foi bom. O amor limpou-se de negro naquela que ficou conhecida como a noite dos corações partidos.
Tinha conhecido Cassandra mas até agora, tantos beijos depois, ainda não sabia quem ela era.
- Era amor – dizia-se. Amor daquele que não é. Daquele que não transforma, só corrói. A natureza não me quis calar e disse mais do que devia portanto fi-lo eu enquanto pude, tentou ela enquanto quis, amarmo-nos como desse, sem nos sabermos conhecer. Eu via-a, ela via-me. Não constatávamos mais do que aquilo que desejávamos. A partilha única vigente era a doença de que ambos padecíamos, aquela sem nome: violinos de angústia que tocam pelas horas da racionalidade.
Ainda antes de conseguirmos cometer mais alguns de todos os erros possíveis já com as palavras nos amávamos. Nem foi preciso mentir.
A meta foram as palavras que todos já conhecemos e que o destino teceu há demasiado tempo na nossa sentença de ansiedade: ela tinha razão.
O maior pressuposto de estar vivo é morrer e eu esperava contornar só mais esta lei do Universo: não haveria mundo que me parasse.

(continua)